Maiores frequência e intensidade de enchentes, secas, furacões e incêndios põem em questão o papel da indústria seguradora
Não é de hoje que a indústria mundial de seguros discute quais serão os efeitos das mudanças climáticas sobre suas atividades. Ela começou a se questionar a respeito já nos anos 1970. De lá para cá, as perguntas sobre o assunto não mudaram – já as respostas estão cada vez mais pessimistas.
Em 1973 a Munich Re, gigante do ramo de resseguros (proteções que as seguradoras contratam para o caso de terem de pagar valores altos demais a um ou mais segurados), divulgou um relatório intitulado “O Possível Aquecimento Global e suas Consequências para a Indústria de Seguros”. Foi provavelmente a primeira grande empresa do mundo a interessar-se pelo assunto.
Muitos fatores vêm à mente quando ouvimos notícias sobre, ou quando somos vítimas de, eventos ligados à crise do clima. Seguro deveria ser um deles. Contar com alguma proteção financeira para os estragos que esses eventos causam tem se tornado importante. O problema é que já existem locais e/ou bens patrimoniais no planeta para os quais as seguradoras recusam-se a vender apólices. Ou só o fazem a um preço (chamado no ramo de prêmio) altíssimo.
Com a crise climática mais intensa a cada ano, em algum momento ela fará com que vastas partes do planeta tornem-se inseguráveis – ou seja, impossíveis de serem cobertas por qualquer tipo de seguro. Isso sem contar as cada vez mais numerosas restrições de cobertura nos contratos ainda disponíveis.
Os efeitos da crise climática cada vez mais intensa estão bastante visíveis nos incêndios que vêm arrasando Los Angeles. Calcula-se que as perdas superarão US$ 200 bilhões. Goldman Sachs e Wells Fargo estimaram que o custo para as seguradoras pode chegar a US$ 30 bilhões.
A Califórnia, onde fica Los Angeles, já enfrentou outros incêndios destruidores em anos recentes. Segundo a revista “The Economist”, em 2022 a Allstate, que era a quarta maior seguradora residencial e de acidentes da Califórnia, cessou a venda de apólices. Em março do ano passado, a State Farm, outra seguradora, cancelou 30 mil apólices de seguro residencial no estado. Parte destes cancelamentos devem-se a uma lei californiana de 1988 que proibia as seguradoras de incorporarem ao preço das apólices custos previstos com catástrofes climáticas. Recentemente essa lei foi revogada.
Considerando tragédias como as enchentes no Rio Grande do Sul em abril e maio de 2024 (que deixaram 182 pessoas mortas e prejuízos de R$ 12,2 bilhões), cabe o temor de que também em partes do Brasil será inviável a aquisição de seguros contra danos a residências, a instalações industriais e comerciais.
“As mudanças climáticas representam um desafio para a indústria global de seguros, aumentando a frequência e a intensidade de eventos extremos”, diz Eduardo Toledo, presidente da Associação Brasileira das Empresas de Corretagem de Resseguros e vice-presidente da Alper Re Corretora de Resseguros. “Isso eleva os custos de sinistros, pressiona nosso modelo de negócio e dificulta a precificação de apólices. Regiões vulneráveis estão se tornando, também, regiões inseguráveis.”
A crise climática vai bem além de um aumento da temperatura planetária. Um de seus efeitos são, por exemplo, ondas de frio muito fortes no Meio-Oeste dos EUA durante os meses finais e iniciais de cada ano. Ou alagamentos devido a chuvas em locais tão insólitos como partes do Saara, na África, o maior deserto do globo. E também furacões cada vez piores no Caribe e na Costa Leste americana, ao passo que na Costa Oeste incêndios, como os atuais, têm se mostrado quase incontroláveis.
Há outras consequências do aumento da temperatura média da Terra. No extremo norte do planeta as geleiras da Groenlândia estão derretendo. No extremo sul, a Antártida está ficando verde. Satélites da Nasa indicaram que entre 1986 e 2021 a cobertura vegetal por lá aumentou de 0,863 km2 para 11.947 km2 – e isso não é boa notícia. A capacidade da superfície da Antártida de refletir a radiação solar está diminuindo por esse motivo, reforçando assim o aquecimento global, em um processo destrutivo que se retroalimenta.
O custo dos estragos causados pela mudança climática à indústria mundial de seguros precisa, para que seja devidamente avaliado, ser exposto em números. “Segundo estimativa do Swiss Re Institute, as perdas seguradas globais decorrentes de catástrofes naturais alcançaram US$ 60 bilhões no primeiro semestre de 2024”, afirma Evandro Baptistini, sócio da Flexa Consultoria e professor da Escola de Negócios e Seguros (ENS).
A Munich Re, outra gigante resseguradora, divulgou uma estimativa de que as perdas causadas por furacões, incêndios e outros desastres somaram R$ 320 bilhões em 2023, dos quais US$ 140 bilhões foram cobertos por seguro, segundo o “Financial Times”.
Não há dados específicos desse custo no Brasil, onde o setor tem mostrado bom crescimento. A Superintendência de Seguros Privados (Susep) reportou recentemente que de janeiro a outubro de 2024, último mês já contabilizado, a arrecadação das seguradoras totalizou R$ 361 bilhões, uma alta de 13,1% sobre o mesmo período de 2023.
Mas os desafios são visíveis. Vão das inundações à falta de água. Em 2024, cinco gigantescas bacias hidrográficas brasileiras foram oficialmente declaradas em “estado de escassez hídrica” pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). Foi a primeira vez, em mais de 100 anos de medições de volume, que isso aconteceu. Tal escassez devido à falta de chuvas se deu nos rios Paraguai, Puris, Madeira, Tapajós e Xingu. Foi a maior seca já registrada na região Norte do Brasil, onde estão todos esses rios, com exceção do Paraguai.
Antes, em novembro de 2023, descobriu-se que pela primeira vez temos um deserto em território nacional. Trata-se de uma área que fica no vale submédio do rio São Francisco, centro-norte da Bahia, na divisa com Pernambuco. É um território desértico com cerca de quatro vezes o tamanho da cidade de São Paulo. Até então não existiam desertos no Brasil, apenas regiões semi-áridas.
Por enquanto, isso não mudou a oferta de cobertura no país. “No Brasil ainda não há indicações de que seguradoras estejam limitando contratos específicos em função de eventos climáticos”, diz Alexandre Leal, diretor técnico, de Estudos e de Relações Regulatórias e diretor de Sustentabilidade da Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização (CNseg). “No entanto, catástrofes climáticas que prevíamos apenas para os próximos anos já estão se dando hoje, aqui e no exterior.”
Isso deve ter consequências. “Atualmente existem debates jurídicos quanto à responsabilidade das seguradoras em razão do aumento de eventos climáticos extremos e da sua previsibilidade crescente em razão das mudanças climáticas”, diz Gaya Schneider, sócia do escritório Ernesto Borges Advogados e presidente da Comissão Nacional de Direito Securitário da OAB Federal. “Incêndios ocorridos na Califórnia no passado recente, em 2008 e 2009, reduziram a oferta de seguro residencial, acarretaram o cancelamento de contratos e o aumento do valor do seguro em até 50%, em razão da alta sinistralidade e das vultosas perdas financeiras por parte das seguradoras.”
Catástrofes climáticas que prevíamos apenas para os próximos anos já estão se dando hoje”
— Alexandre Leal
Conforme as anomalias no clima ficam mais frequentes, elas deixam de ser anomalias e se tornam o “novo normal” em se tratando dos riscos a serem enfrentados por seguradoras. À medida que isso ocorre, um personagem já importante para essa indústria se torna ainda mais valioso: o corretor de seguros, talvez quem melhor conheça como funciona – e como fazer funcionar em condições adversas – o setor.
Ricardo Gomes dos Santos é sócio da Tunna Seguros, corretora atuante há 28 anos no mercado de seguros do Centro-Oeste brasileiro. A empresa é especializada em prover seguros para o agronegócio. Ele já percebe um aumento forte no preço a ser pago pelos clientes que querem adquirir determinadas apólices – as que se ligam, de alguma forma, à crise climática.
“As mudanças no clima têm afetado diretamente a precificação de seguros, tanto no Brasil como em outras partes do mundo. Isso especialmente em áreas de alta vulnerabilidade a eventos extremos, tal como regiões costeiras no sul dos EUA”, diz. “O setor agrícola nacional tem sofrido nos últimos anos, com maior frequência e intensidade, secas prolongadas, chuvas excessivas, granizo e geadas. São eventos que causam grandes perdas financeiras aos produtores. O mercado de seguros, para equilibrar suas operações, acaba tendo de aumentar suas taxas ou reduzir suas coberturas.”
Diante disso, as opções restantes acabam sendo poucas. “Já se constatam taxas mais altas no Sul e no Sudeste do Brasil em se tratando de riscos de granizo e geada. Pode-se fazer aí um contraponto ao Centro-Oeste, onde tais riscos específicos são quase nulos e as taxas acabam sendo baixas”, diz.
Mas Gomes dos Santos adverte: “As taxas têm aumentado até mesmo no Centro-Oeste nos últimos anos para os riscos de excesso de chuvas, em especial no período de colheita da soja [janeiro a março]. Há também por lá o oposto, o risco de falta de chuvas nos períodos em que os principais grãos produzidos na região, soja e milho, mais precisam de água. Isso acaba por encarecer o prêmio para a agroindústria de Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul”.
Em se tratando do agronegócio nacional, o desafio de prover seguros ao setor a um preço viável mostra-se delicado em tempos de crise climática. O peso do agronegócio no PIB brasileiro é alto: 21,8% em 2024, segundo cálculo do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Esalq/USP, em parceria com a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Como a atividade agrícola se dá, em sua maior parte, ao ar livre, as fazendas são especialmente vulneráveis a intempéries. E o agricultor não tem como determinar, embora possa prever, a incidência de chuva ou sol em sua plantação.
Trata-se de uma atividade econômica muito dependente de fatores sobre os quais ninguém exerce controle. Daí a importância dos seguros. Há no Brasil o subsídio a seguros agronômicos. Trata-se de um apoio financeiro vindo do governo federal para reduzir o custo do seguro rural. O Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR) arca com parte do custo do seguro.
O poder público pode chegar a bancar 60% do valor total de uma apólice, dependendo do tipo de cultivo agropecuário que se deseja segurar e a disponibilidade orçamentária do governo. O PSR busca ajudar na cobertura de perdas causadas por eventos como secas, geadas e tempestades. Em tempos de crise climática, o agronegócio brasileiro ancora-se no programa. Mais especificamente, o PSR opera com os segmentos agrícola, florestal e pecuário, e se foca no agronegócio voltado à exportação.
Além do PSR, certos estados (São Paulo e Paraná destacam-se) também oferecem subvenções para reduzir os custos dos seguros agropecuários. O valor do seguro para produtores rurais pode variar entre 3% e 15% do custo total de produção da lavoura. E há, por fim, algumas poucas prefeituras que mantêm programas de subsídio ao seguro rural para as fazendas dentro de seus limites municipais.
Uma alternativa, ainda incipiente no Brasil mas já amplamente usada no exterior, é o seguro paramétrico. Também conhecido como seguro de índices climáticos, o seguro paramétrico é um gênero de apólice bastante adequado ao agronegócio. Ele tem como referência os eventos climáticos registrados em comparação com índices ou parâmetros pré-determinados (daí o nome dessa modalidade de apólice).
“O maior problema que o mercado nacional de seguros agrícolas enfrenta é a baixa adesão ao produto em comparação com outras regiões produtoras mundo afora, onde quase 100% das lavouras são protegidas por apólices”, afirma Ricardo Gomes. “A maior adesão por aqui se dá nas regiões com alto risco climático, concentrando assim tais riscos e aumentando as perdas no mercado. O ideal seria que todos os produtores contratassem seguro agrícola para que o fundo arrecadado pelo mercado fizesse frente aos prejuízos que todos os anos ocorrem em regiões isoladas”, diz ele.
“Baixa arrecadação e alta concentração de riscos levam a prêmios cada vez mais altos a serem pagos. Levam ainda a uma menor disposição e apetite por parte das seguradoras e resseguradoras para entrar nesse nicho do mercado de seguros, pois nossa principal característica é a baixa dispersão de risco.”
Glaucio Toyama levanta outros aspectos da questão. Ele é líder da Comissão de Seguro Rural da FenSeg (Federação Nacional de Seguros Gerais), voltada ao desenvolvimento de atividades específicas com seguros de danos e responsabilidades. “O debate acerca das mudanças climáticas e a percepção clara de riscos pelos produtores, nossos principais clientes, propiciam uma infinidade de abordagens”, diz Toyama. “O programa de seguros do país precisa crescer para ser viável, precisa distribuir seus riscos assumidos e ter portfólios mais sustentáveis.”
Para Toyama, a indústria securitária pode acelerar o emprego de tecnologia, “fazendo um melhor uso dos recursos naturais e apoiando as políticas e protocolos socioambientais existentes”. “Além disso, temos diversas cadeias produtivas e novos cenários que devem entrar no radar do segmento, colaborando na gestão dos riscos sanitários e recursos naturais nas propriedades rurais.”
Toyama diz que os recursos do PSR ainda não são suficientes. “A penetração dos seguros rurais entre nós segue muito baixa, menor que 10% sobre o VPB [Valor Bruto da Produção], o que faz com que milhares de pequenos e médios produtores rurais não acessem o produto seguro no Brasil.”
Outro ângulo a ser observado é trazido pelo presidente da Comissão de Riscos Patrimoniais Massificados da FenSeg, Jarbas Medeiros. Seguros contra riscos patrimoniais massificados são aqueles voltados à proteção do patrimônio de pessoas físicas e jurídicas, incluindo residências, condomínios residenciais, comerciais ou micro, pequenas e médias empresas.
“As mudanças no clima vistas mais fortemente nos últimos dez anos têm aumentado a procura pelos seguros massificados, pois pessoas e empresas passaram a se perceber mais expostas a ocorrências de fenômenos climáticos”, diz ele. Houve crescimento de dois dígitos nos últimos anos. Mesmo assim, pondera, a participação dos seguros ainda é muito baixa entre nós: menos de 17% das residências e 20% das empresas brasileiras conta com a proteção de um seguro. “Ainda há muito espaço para o crescimento desse mercado.”
Medeiros destaca a situação peculiar do Brasil: “Nosso país, que já era campeão mundial em queda de raios, também passou a conviver com grandes tempestades e ventos fortes, que ocorrem com cada vez mais frequência principalmente no Sul e Sudeste. Nos seguros patrimoniais, a cobertura de danos elétricos concentra a maior ocorrência de eventos, sendo os sinistros caracterizados pela queda de raios e variações anormais de tensão que causam a queima de bens eletroeletrônicos”.
A cobertura de danos contra vendavais, diz ele, registra um aumento significativo nos últimos anos. “Também temos notado um incremento na contratação de apólices contra alagamentos e inundações em todo o Brasil. Diante deste cenário, as seguradoras precisam sofisticar seus modelos de preços a fim de capturar as recentes mudanças ocorridas. E devem redesenhar apólices para oferecer a proteção mais adequada aos clientes nesses tempos de crise climática.”
No caso de um dos seguros mais usados no país, o de automóveis, não há relatos de uma mudança na maneira como as seguradoras tratam os sinistros causados por enchentes. “Danos a um veículo por causa de enchente são cobertos se esse veículo tiver o que é conhecido como cobertura compreensiva ou seguro total”, informa Baptistini, da Escola de Negócio e Seguros.
Mas ele faz a ressalva: “É bastante provável que esta modalidade de seguro automotivo se torne mais cara em razão do aumento de sinistros em automóveis causados por enchentes em decorrência da crise climática”.
Há consenso de que as seguradoras terão, ao menos até certo ponto, de se recriarem para que consigam oferecer apólices a indivíduos e empresas diante da mudança no clima. “Numa abordagem mais ampla, podemos afirmar que os efeitos climáticos não afetam a todos de forma igualitária. As regiões e populações mais pobres são mais atingidas e sentem mais seus impactos, tanto em relação à saúde quanto a perdas materiais, muitas vezes irreparáveis, além da perda de vidas”, afirma Baptistini.
“No entanto, essas populações mais pobres estão à margem do setor de seguros. Não têm proteção por meio de apólices, por mais básicas que sejam. A propósito, acredito ser essa uma grande oportunidade para que o setor promova a inclusão dessa parte da população via desenvolvimento de produtos específicos e acessíveis a tal público.”
O enfrentamento do problema se dá em diversos níveis. Entidades e executivos de seguradoras apresentaram na Câmara dos Deputados, em abril do ano passado, propostas de proteção rápida contra sinistros causados por eventos extremos de secas e enchentes, no âmbito das mudanças climáticas. “O fato está aí, não é mais mera especulação. Convivemos nos últimos anos com uma maior frequência e maior intensidade de eventos e distorções climáticas”, diz Rogério Gomes.
“Tornou-se comum ouvirmos dos clientes que eles plantam há 30 anos em uma região e nunca haviam visto um acúmulo tão grande de chuvas ou uma seca se prolongar por tanto tempo”, afirma Gomes. A percepção de risco aumentou bastante, diz ele, em todos os segmentos que servem à agricultura, como as corretoras de seguros.
“Mas ainda estamos no início dessa jornada, e se faz necessária uma mudança cultural, pois muitos ainda acreditam que se trate de eventos passageiros, isolados.” Para Gomes, a mudança cultural e de percepção de riscos relacionados às alterações climáticas começou. “O que vai determinar sua velocidade são os eventos que estão por vir.”
Entrevista disponível em: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2025/01/17/como-as-seguradoras-estao-lidando-com-os-estragos-causados-pela-mudanca-climatica.ghtml
Autor: Gaya Lehn Schneider Paulino • email: gaya@ernestoborges.com.br • Tel.: +55 67 3389 0123