À pergunta sobre o que vem a ser a cláusula hardship, quase que unanimemente as fontes de pesquisa respondem que se trata, na prática contratual internacional, da previsão segundo a qual caberá a uma das partes contratantes solicitar a renegociação, revisão ou alteração do contrato, em razão de imprevisíveis alterações decorrentes de fatores políticos, econômicos, financeiros, legais ou tecnológicos, alterações estas que efetivamente causem danos econômicos a um dos contratantes.
É de bom tom, portanto, para o fim de garantir a segurança das partes figurantes em contratos internacionais privados, a inserção da cláusula hardship, também com o objetivo de inibir ou mitigar o desequilíbrio econômico entre as partes, assim preservando o negócio jurídico a partir de sua revisão.
Para nós, acostumados a lidar com o direito contratual pátrio, isso até aqui dito muito se assemelha a institutos jurídicos aplicáveis pelo nosso dirigismo contratual, como a cláusula rebus sic standibus e o princípio da preservação do negócio jurídico anulável, de modo que muito nos ajuda na compreensão do mecanismo a que se presta a cláusula hardship.
De qualquer sorte, é importante ressaltar que a cláusula hardship não é uma garantia automática de renegociação, devendo ser prevista expressamente, ser delimitada quanto aos fatores que a provocariam e ser invocada oportunamente.
A parte que deseja invocar a cláusula hardship deve verificar quais as circunstâncias que mudaram e, efetivamente, se mudaram de forma significativa a base contratual, para assim precipitar a necessária renegociação e evitar prejuízos consideráveis.
Ocorre que, como visto, essas circunstâncias de alteração, conforme as fontes de pesquisas, se resumem às consequências decorrentes de fatores políticos, econômicos, financeiros, legais ou tecnológicos como, exemplificativamente, mudanças nas leis ou regulamentos do País onde se devem cumprir os direitos e obrigações contratuais, desvalorização cambial, guerras ou conflitos políticos, entre outros.
O que me motivou a trazer as considerações que trago nesse artigo foi o seguinte questionamento: E os fatos religiosos? Seriam eles circunstâncias suficientes a permitir a invocação da cláusula hardship, de modo a revisar negócios jurídicos internacionais?
Responder a tais questionamentos se afigura a cada dia mais importante para aqueles que lidam com contratos internacionais privados, se lembramos que especialmente os países do oriente têm se aberto a partir da realização, por exemplo, de eventos esportivos que atraem pessoas do mundo ocidental, tornando uma realidade o intercâmbio de culturas, hábitos e religiões.
O mundo nos apresenta, em seus quatro cantos, vertentes religiosas as mais variadas, podendo ser citados o Irã xiita, a Arábia Saudita sunita, o Israel judaico, a Índia hinduísta e a América cristã.
Imaginemos, pois, a partir disso, quanta diferença existiria eventualmente – no que diz respeito ao comportamento baseado nos dogmas religiosos seguidos em certos e determinados países – como fator religioso que pudesse interferir no equilíbrio econômico num contrato de patrocínio envolvendo a divulgação de uma marca belga num evento em qualquer emirado árabe ou, ainda, num contrato de distribuição de um alimento produzido na Alemanha para fins de revenda em Nova Delhi.
A cláusula hardship pode SIM ser aplicada em circunstâncias imprevisíveis e significativas além daquelas que a maioria esmagadora da doutrina propala, incluindo-se aí as religiosas, posto que essas podem afetar e alterar significativamente as bases contratuais, especialmente em países onde a religião tem um papel importante na vida dos cidadãos.
A depender do País, sabemos que a religião influencia nas vestimentas que são utilizadas, nos hábitos externados em público, nos alimentos que são consumidos e, até mesmo, na aprovação de leis que devem ser obedecidas, pelo que diante de tais realidades, nada mais salutar nos contratos internacionais, com o fim de se evitar ou mitigar o risco de desequilíbrio, que se prever uma cláusula hardship que permita a renegociação do contrato caso ocorra alteração da base contratual decorrente de fator religioso.
Mas não nos esqueçamos de que até mesmo a aplicação da cláusula hardship, diante de circunstâncias religiosas, pode ser um tema controverso, sensível e que tenha que superar obstáculos, já que em alguns países mais rígidos, a renegociação de um contrato com base em motivos religiosos pode ser vista como uma interferência na liberdade religiosa.
Socorreriam as partes contratantes, na hipótese do parágrafo anterior, a Convenção Interamericana sobre Direito Aplicável aos Contratos Internacionais (México, 1994), a Convenção Interamericana sobre Arbitragem Comercial Internacional (Panamá, 1975), a Convenção da Comunidade Econômica Europeia sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais (Roma, 1980) e a Convenção sobre a Lei Aplicável aos Contratos de Venda Internacional de Mercadorias (Haia, 1986), convenções internacionais que aderiam à liberdade das partes em escolher a lei aplicável aos seus contratos.
Assim, e por fim, é importante que as partes sejam transparentes na negociação, prevendo expressamente a religião como possível fator de alteração da base do negócio jurídico, de modo a causar desequilíbrio econômico e contratual, previsão essa que se caracterizaria como cláusula hardship que permitirá a revisão e a preservação contratuais no âmbito das relações negociais internacionais.
Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/coluna/o-fator-religioso-e-a-clausula-hardship.ghtml
Autor: Mauricio Aude • email: mauricio.aude@ernetoborges.com.br • Tel.: + 5565 99981 0853