Imagem de uma pessoa segurando um frasco de vacina para Covid

A intensificação do debate sobre licenciamento compulsório de patente, comumente veiculado como “quebra de patente”, está entre as principais pautas internacionais. Não poderia ser diferente, enfrentamos a maior crise de saúde dos últimos 100 anos, as incontáveis vítimas da COVID-19 e recordes de mortes assombram o mundo e principalmente nosso país.

A discussão é antiga com raízes em outro momento crítico da saúde, o combate ao vírus HIV e a proteção dos primeiros medicamentos que revolucionaram o tratamento da doença. Na época, o Congresso Nacional aprovou o Decreto Lei nº 3.201/99, responsável por regulamentar a licença compulsória prevista no art. 68 e 71 da Lei da Propriedade Industrial (LPI), viabilizando, assim, o licenciamento compulsório das patentes nas hipóteses de abuso de direito econômico e em casos de emergência nacional ou interesse público, declarados por ato do Poder Executivo.

Naquele momento, a pauta era unânime no Governo Federal. O Brasil foi protagonista na disputa internacional, confrontando os EUA no painel da OMC, responsável por investigar a Lei de Propriedade Industrial brasileira. Os norte-americanos alegavam o risco da aplicação indiscriminada do art. 68 da LPI e consequente insegurança jurídica das indústrias farmacêuticas, cujas patentes poderiam ser licenciadas sob argumentação subjetiva, lastreada no conceito amplo de “abuso de poder econômico”.

O acordo entre os países e a retirada da queixa pelos EUA, representaram relevante passo na luta contra a Aids, sendo inegável o uso negocial desta “arma jurídica” pelo então Ministro da saúde, que ao anunciar o licenciamento compulsório do medicamento Nelfinavir por abuso econômico e impossibilidade de custeio dos medicamentos, conseguiu a redução dos preços em 40,5%.

Por óbvio, o atual cenário das vacinas é oposto à situação vivida no início dos anos 2000. Na época, o debate envolvia abuso de poder econômico dos titulares das patentes devido à cobrança de valores exorbitantes. Hoje estamos em emergência nacional. A problemática não está nos valores dos imunizantes, mas sim, na falta de disponibilidade de vacinas e remédios, único caminho na redução dos altos índices de mortalidade e no arrefecimento dos negativos reflexos sociais e econômicos gerados pelo isolamento social.

O descompasso aumenta na inversão de papéis no cenário internacional. EUA e UE, detentores de boa parte das patentes das vacinas, se mostram abertos à licença compulsória em situações como a da atual pandemia, já o governo brasileiro ainda defende a proteção irrestrita da propriedade intelectual.

Coube ao Senado Federal resgatar o posicionamento histórico e aprovar o PL12/2021 reafirmando o óbvio; pois nosso ordenamento jurídico já prevê o licenciamento compulsório (art. 68, 71 da LPI), bem como o TRIPS, principal acordo internacional sobre o tema, igualmente o permite em casos de emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência (art. 31 TRIPS). Na prática, o projeto “obriga” o Executivo a elaborar lista de patentes a serem licenciadas compulsoriamente.

Não se discute, que legislação nacional e os acordos internacionais de propriedade intelectual devam proteger o arcabouço de pesquisa e desenvolvimento, além de estimular a inovação mundial, resguardando a exploração econômica dos desenvolvedores que investiram nas pesquisas.

O receio legítimo de parte dos pesquisadores reside na “quebra de patentes” em momentos excepcionais, sob pena de causar verdadeiro desestímulo ao “engajamento” e mobilização da indústria farmacêutica em situações de emergência nacional. Ou seja, a “certeza” da quebra de patente, pode ser o fiel da balança no volume de investimentos em “soluções médicas”, caso enfrentemos outra pandemia.

Porém, o licenciamento compulsório é temporário e oneroso. Durante sua vigência são pagos royalties, aos detentores das patentes, sobre o percentual do volume de recursos gastos para fabricação ou importação do medicamento, bem como após o findado o prazo o titular volta a usufruir da exclusividade de sua invenção.

Ora, nos próximos ciclos de vacinação, com a produção dos imunizantes capaz de fazer frente à demanda mundial e a consequente metamorfose da pandemia em epidemia, as farmacêuticas continuarão explorando suas patentes com plena possibilidade de reaver seus investimentos.

No entanto, a licença compulsória diminuiria a escassez de vacinas no Brasil, dado que não dominamos cientificamente o ciclo de produção das principais vacinas. Nessa hipótese a inovação legislativa e o licenciamento compulsório encontrariam respaldo na prática?

Óbvio que sim, no curto prazo a quebra de patente não obriga o Brasil a produzir os imunizantes. O objetivo com o movimento coordenado internacional é aumentar a capacidade produtiva mundial em países que detém a tecnologia da produção, mas não detém a patente, o que aumentaria a disponibilidade de imunizantes no mundo, podendo o Brasil adquirir em qualquer um desses países.

A longo prazo, o licenciamento compulsório deve servir de estímulo ao nosso desenvolvimento científico. Conforme a PL 12/2021, os titulares das patentes transmitiriam as informações necessárias e suficientes à efetiva reprodução do objeto protegido. Somente assim, cultivaríamos solos férteis ao desenvolvimento científico pátrio, para talvez na próxima crise de saúde produzirmos uma vacina, ou, no mínimo replicarmos o ciclo de produção.

 

Disponível em: https://analise.com/opiniao/da-aids-a-covid-19-o-que-muda-com-o-licenciamento-compulsorio-de-patentes

Autor:

voltar Icone Mais Direita