Quando nos referimos à “litigância predatória”, tratamos, em geral, sobre o ajuizamento de um grande volume de demandas, com petições padronizadas, que contêm objetos idênticos e alegações genéricas, envolvendo partes tidas como vulneráveis (p. ex. idosos, analfabetos ou indígenas), nas quais se buscam vantagens indevidas.
Nessas ações, é bastante comum que, quando da intimação por oficial de justiça e/ou do comparecimento às audiências, os autores das demandas manifestem desconhecimento a respeito do advogado que supostamente constituíram e até mesmo do teor da medida judicial, fato que denota a ausência de consentimento livre e esclarecido da parte em relação ao objeto da lide e à sua participação no processo.
Situações dessa natureza têm se tornado cada vez mais frequentes e, por esse motivo, têm atraído grande atenção no país, uma vez que encarecem a máquina judiciária e tornam o acesso à justiça cada vez mais moroso.
Em virtude do potencial extremamente lesivo aos atores e às instituições envolvidas nos expedientes, o Poder Judiciário brasileiro tem sido instado a se pronunciar de maneira contundente contra essa conduta danosa, adotada por alguns profissionais.
Em recente decisão, o Juiz de Direito, titular da Vara Única da Comarca de Riachão das Neves/BA, extinguiu, sem resolução do mérito, 552 (quinhentas e cinquenta e duas) ações, por ter constatado a ausência de legitimidade e/ou de interesse processual (previsão contida no art. 485, VI, do CPC), além de ressaltar a evidente má-fé do patrono das partes, que distribuiu demandas de idêntico objeto em desfavor das mais diversas instituições financeiras.
Em sua manifestação, o magistrado destacou que o “sinal de alerta” partiu do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, perante o qual esse mesmo advogado já propôs mais de 40.000 (quarenta mil) medidas judiciais. Ao averiguar o caso, o Centro de Inteligência dessa Corte (CIJEMS) identificou a “prática expansiva dessa atuação predatória para outras unidades da Federação, a citar: Mato Grosso, Tocantins, Bahia, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, etc.” e emitiu Nota Técnica n. 01/2022, na qual expõe detalhes sobre o incidente.
De acordo com essa nota, “o padrão de atuação do referido advogado, que se mostrou idêntico entre 99% e 100% dos processos eleitos por amostragem”, é caracterizado por condutas que causam elevada estranheza, tais como: (i) a ausência de documentos que revelem diligências prévias, (ii) o requerimento de dispensa de audiência de conciliação e (iii) a existência de procurações genéricas, dentre outras.
Há informação, inclusive, de que pesam contra esse causídico diversos procedimentos investigativos instaurados pelo Ministério Público de diversas unidades da federação, além de múltiplos expedientes de apuração ética em seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil.
Ainda no que se refere ao caso em debate, o magistrado prolator da sentença em comento ressaltou ter constatado que “pessoas têm ingressado com ações indenizatórias em face do causídico pelo desconhecimento da propositura de ações em seus respectivos nomes e/ou pelo não recebimento de indenizações arbitradas em seu favor”.
Ao longo das 29 (vinte e nove) páginas que compõem seu pronunciamento, o Juiz de Direito debruçou-se sobre as circunstâncias desse episódio extraordinário e expôs detalhadamente os contornos da prática predatória e da atuação do advogado no Poder Judiciário do Estado da Bahia, com ênfase destacada às irregularidades constantes dessas demandas.
Ciente da excepcional cautela exigida no caso, o julgador preocupou-se em carrear as inúmeras provas de captação ilícita de clientes por parte do patrono e destacou que, por vezes, as partes afirmam ter assinado as procurações, mas sem obter o prévio conhecimento acerca de como e com quais finalidades seriam utilizadas.
Nesse ponto, o magistrado apresentou os prints das procurações juntadas aos autos analisados e verificou que o causídico produzia verdadeiras montagens, uma vez que “muitas destas procurações são fotocópias ou foram digitalizadas com uma folha sobreposta à outra, em que uma consta a qualificação do ‘cliente’ e a outra, os poderes em tese “outorgados”, o que resultou em grande desalinhamento do documento”.
Em complementação, registra que tal fato “dá a entender que foram elaborados separadamente” e afirma que “em razão da forma como foram confeccionadas, não se espera destas procurações a confiabilidade que o ato jurídico necessita”.
Por estes e outros motivos, detalhadamente abordados na decisão, entendeu que o advogado se valeu de demandas fraudulentas e que restou configurado o abuso de direito.
Por fim, o julgador concluiu acertadamente que, “Ao inibir essas práticas nocivas à prestação jurisdicional, resguarda-se o direito à saúde, alimentação, moradia, liberdade, entre outros direitos fundamentais, os quais, deixam de ser avaliados com presteza e efetividade em razão da unidade judiciária estar abarrotada de litígios fabricados, afetando, inclusive, a análise de demandas urgentes e com prioridade legal”.
Cumpre asseverar que, além de fruto do esforço individual do magistrado, essa decisão decorre da observância às diretrizes veiculadas pelo Conselho Nacional de Justiça no bojo da Recomendação 0000092-36.2022.2.00.0000, exarada em 08/02/2022, com o intuito de combater o fenômeno das demandas opressoras, que já possuem alcance nacional.
No caso em questão, a instituição financeira (que figura como requerida nestes autos foi representada pelo escritório Ernesto Borges Advogados.
Decisão proferida no processo 8000315-28.2020.8.05.0210.
Disponível em: https://www.jornaljurid.com.br/doutrina/civil/exercicio-de-litigancia-predatoria-ocasiona-extincao-de-centenas-de-acoes-judiciais-em-riachao-das-neves
Autor: Camilla Dias G. Lopes dos Santos • email: camilla.santos@ernestoborges.com.br • Tel.: +55 61 98666 0542