Há tempos a comunidade jurídica – leia-se, advogados, pesquisadores, empresas, associações, Tribunais, CNJ, entre outros – debate a prática do negativo fenômeno da litigância predatória. Sem qualquer pretensão de conceituar detalhadamente, em suma, costumeiramente trata-se do ajuizamento injustificado de quantidade relevante de ações, eivadas de má-fé, nos mais diversos estratagemas, com intuito de obter vantagens – inclusive para fins de enriquecimento –, prejudicando a parte contrária.
No âmbito cível, esse movimento usualmente pairava sobre demandas massificadas consumeristas, genéricas, com o mesmo fundamento e causa de pedir, sem apresentação de documentos, ou apresentando documentos questionáveis, e apostava no volume de processos como meio para atingir intenções ilegítimas contra sociedades empresárias. Além de sobrecarregar o Judiciário e trazer prejuízos imensuráveis ao erário público, limita o princípio constitucional do amplo acesso à justiça àqueles que genuinamente necessitam da prestação jurisdicional.
Ocorre que, nos últimos tempos, a litigância predatória aparenta ter encontrado espaço em mais um segmento, com nova roupagem, focada em público-alvo diverso: processos de carteira menos volumosa, ajuizados por devedores em recuperação de crédito estratégica e de valores de alta monta. O intuito, por outro lado, segue o mesmo, com o diferencial de que a aposta passa a ser menos voltada para quantidade de processos e mais para o valor das ações.
A sistemática é simples, mas, por vezes, desempenhada de maneira sofisticada, haja vista os valores em patamares até mesmo milionários. Devedores de créditos relevantes, empresários do alto segmento (enquanto jurisdicionados), por iniciativa própria ou por sugestão de advogados que estão longe de pensar no melhor interesse – legítimo – de seus clientes ou na ética da profissão, ingressam com ações revisionais, embargos à execução ou, em última instância, com pedidos de recuperação judicial – entre tantas outras medidas. Foi ultrapassado, portanto, o âmbito do consumidor comum. Atingiu o ramo empresarial, cujos jurisdicionados são assessorados por contadores, advogados, consultores financeiros especialistas no assunto – não havendo que se falar, assim, em hipossuficiência, seja lá em qual vertente.
Qualquer que seja o caminho, o afã é tentar obter validação, via Poder Judiciário, para desconto parcial ou total na dívida perante seus credores, o famigerado “calote”. As teses são as mais teratológicas possíveis, o que apenas evidencia a má-fé dos pleitos. Abarcam desde julgados ou artigos de lei inaplicáveis aos casos concretos, retardamento proposital do processo e alcançam até mesmo negativa ao que expressamente pactuaram no passado, quando da celebração das operações bancárias e contratos. E não é só. A estratégia envolve, inclusive, ingressar com processos recuperacionais, ainda que sem real necessidade econômica e financeira, para atribuir aos credores suspensão das ações e execuções, obter a declaração de essencialidade aos bens – retardando a execução de ativos, em caso de inadimplemento, aos credores não sujeitos –, imputar aos credores sujeitos pagamento com condições extremamente punitivas. O pano de fundo é sempre o mesmo: o vitimismo da situação econômica e financeira, que tende a não coincidir com a real situação.
Na maioria das vezes, ainda que em fase recursal, os credores obtêm êxito em demonstrar os absurdos e o pleno direito que detêm. Todavia, excepcionalmente, algumas decisões judiciais, por confusão ou desconhecimento dos temas – que não são de simples compreensão, não se olvida –, acabam por acatar algum dos diversos pleitos dos litigantes predatórios. Nos processos recuperacionais depara-se com um desafio ainda mais intenso, pois o magistrado sequer faz um juízo de valor a depender da discussão.
Se tais processos dotados de má-fé conseguem retardar a recuperabilidade ou se têm um dos diversos pedidos acolhidos, essa nova modalidade de litigância predatória atinge sua lamentável finalidade, que nada mais é do que uma aventura jurídica que tenta utilizar dos meios jurisdicionais como uma verdadeira loteria.
A tentativa indevida de redução dos encargos ou então os processos recuperacionais, a título exemplificativo, não são livres de riscos ou de custos. O que se observa, na prática, são jurisdicionados sendo surpreendidos com cobranças para pagamento de honorários sucumbenciais, multas por litigância de má fé e demais custos processuais.
Não raramente se depara com a situação de devedores que além da dívida, passam a dever altas montas de despesas oriundas de processos adicionais, ingressados por eles próprios, sem fundamento que sustente os pedidos. Na mesma toada, recuperandos, após o pedido de recuperação judicial, passam a espernear pela falta de crédito e de parceiros comerciais, em razão da – justificada – falta de apetite de quem contratava com ele outrora.
O êxito dessas demandas, em contraponto, serve de estímulo para outros jurisdicionados mal intencionados, bem como propaganda para a advocacia que pretende fazer dessa aventura um negócio deveras lucrativo.
Por óbvio, a crítica feita alhures não generaliza e não abrange: causídicos sérios que atuam no melhor interesse de seus clientes, visando a combater eventuais abusos contratuais reais (os quais não se descartam e não se desconhecem); o auxílio a uma reestruturação séria do passivo ou empresários de boa-fé em real dificuldade, tampouco os processos, defesas e recursos justificadamente ajuizados. Há bancas renomadas no país neste segmento justamente pelo trabalho honesto e razoável nas negociações em que participam.
Ainda que não se pretenda denominar tal prática de “litigância predatória” ou se encontre nomenclatura mais adequada, o cerne é o mesmo. Estamos diante de um mercado que se vale da advocacia e consequentes decisões judiciais para obter lastro de validade a pretensões ilegítimas.
Da mesma forma que o CNJ incentiva medidas voltadas a combater a litigância predatória massificada e os “Centros de Inteligência” e “Núcleos de Monitoramento do Perfil de Demandas” das Justiças Estaduais tenham criado uma forte rede de informações divulgadas através de notas técnicas, parece salutar voltar as atenções para práticas abusivas no âmbito dos créditos de altos valores, tendo em vista a relevância e impacto perante o mercado.
O argumento de que punir tais atuações ou estabelecer medidas preventivas prejudicará defesa de direitos de quem foi lesado e inibe profissionais éticos não parece razoável. O correto e o incorreto são óbvios. A previsão no ordenamento jurídico de condenação de multa para casos de atuação em litigância de má-fé é uma vitória que repercute no sistema como um todo, mas não afasta a necessidade de compreender o exercício supramencionado e as intenções mascaradas. Autoridades atentas a essa nova forma de atuação, sem dúvida, abrem menos margem para que tal exercício lamentável tenha êxito.
Autores:
EVA BEATRIZ BLASCO XAVIER
Pós-graduada em Legal Operations, pela Pontifícia Universidade Católica de Paraná e especialista em gestão e business law, pela Fundação Getulio Vargas. Sócia gestora do escritório Ernesto Borges Advogados, nas áreas contencioso cível, consumerista de larga escala e direito bancário.
MARCUS VINÍCIUS RAMON SOARES DE MELLO
Mestre em Direito Comercial, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Advogado em São Paulo, nas áreas de recuperação judicial, contencioso cível estratégico, direito bancário e agronegócio.
Autor: Eva Beatriz Blasco Xavier • email: eva.xavier@ernestoborges.com.br • Tel.: +55 67 99239 1111