O acesso à justiça passou a ser protagonista nas principais cartas internacionais desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. A partir daí, ancorou-se, com status de garantia fundamental nas Constituições ao redor do mundo.
Com o fim do laissez-faire, as preocupações começaram a se voltar muito mais para o social (coletivo) e, em razão disso, o simples conceito formal de acesso ao Poder Judiciário foi alterado para algo mais amplo e efetivo, denominado de acesso à justiça. Dentro deste contexto histórico o seu conceito se transforma, de formal para efetivo, pois o Estado deixa de ser um mero coadjuvante para se tornar ator das transformações sociais.
Ficou claro, desde então, que respectivo direito não pode mais ficar reduzido, pura e simplesmente, ao acesso aos tribunais. Ele deve ser compreendido como sendo a linha reta – caminho mais certo, curto e seguro – entre os pontos de entrada e saída do Poder Judiciário.
Ocorre que essa transição para o Estado Social representou uma abertura para uma quantidade infinitamente maior de processos e, em decorrência dessa solução, criou-se um novo problema, qual seja, o direito à uma decisão justa e tempestiva.
Desde então, esse aumento desenfreado de demandas vem contribuindo para a intensificação da denominada “Crise do Poder Judiciário”, de tal sorte que o acesso à justiça virou ele próprio um problema ao permitir a superutilização da estrutura judiciária.
Fato é que o brasileiro nunca acessou tanto à justiça como na atualidade. De acordo com os números mais recentes do Justiça em Números[1], em média, a cada grupo de mil habitantes, 127 ingressaram com uma ação judicial no ano de 2022 e o Poder Judiciário finalizou o ano de 2022 com 81,4 milhões de processos em tramitação, aguardando alguma solução definitiva.
Tal volume significa que, mesmo que não houvesse ingresso de novas demandas e fosse mantida a produtividade, seriam necessários aproximadamente 2 anos e 8 meses de trabalho para zerar o estoque.
É certo que existem inúmeros fatores que contribuem para a judicialização excessiva. Todavia, não há como olvidar o fato de que existe um ponto de intersecção comum entre ambos os fenômenos: a facilidade com que se aciona o judiciário.
Em outras palavras, a facilidade com que se aciona o Poder Judiciário, antes objeto único de celebração e conquista social, passa a se responsável por impulsionar não somente a propositura de demandas legítimas, mas também de ações predatórias, que se caracterizam pelo ajuizamento de uma grande quantidade de ações similares ou idênticas, pelo mesmo advogado ou escritório, contendo narrativas e instruções genéricas, com possíveis falhas ou lapsos nos documentos de representação e com a intenção de obter importâncias indevidas, que muitas vezes não são repassadas ao autor da ação em sua parcialidade ou totalidade.
De acordo com notas técnicas produzidas pelo Centros de Inteligência do TJMT, TJMS, TJBA, TJRN, TJPE e TJMG, alguns dos indicativos de demandas predatórias ou fraudulentas percebidos pelos tribunais se relacionam com as seguintes características: quantidade expressiva e desproporcional aos históricos estatísticos de ações propostas por autores residentes em outras comarcas/subseções judiciárias; petições iniciais acompanhadas de um mesmo comprovante de residência para diferentes ações; petições iniciais sem documentos comprobatórios mínimos das alegações ou documentos não relacionados com a causa de pedir; procurações, contestações e recursos genéricos; distribuição de ações idênticas.[2]
Nesse passo, identificou-se que as facilidades criadas pelo acesso à justiça cultivaram uma nova cultura irresponsável, denominada litigância predatória, com significativos custos diretos ou indiretos ao erário, e ao próprio sistema judiciário, que fica sobrecarregado, negando o acesso à justiça célere e efetiva aos demandantes legítimos, gerando, assim, custos de transbordamento ao socializar os custos e privatizar os ganhos.
E é claro que para problemas complexos não existem soluções simples, bem como que não é a facilidade ao acesso à justiça que deve ser combatida, mas sim o acesso de demandas ilegítimas, razão pela qual o Poder Judiciário vem se organizando a fim de coibir e/ou mitigar essa prática reprovável.
Dentre várias ações, se destaca a Diretriz Estratégica n. 7, de 2023, para as Corregedorias, a qual visa “Regulamentar e promover práticas e protocolos para o combate à litigância predatória, preferencialmente com a criação de meios eletrônicos para o monitoramento de processos, bem como transmitir as respectivas informações à Corregedoria Nacional, com vistas à alimentação de um painel único, que deverá ser criado com essa finalidade”. Em decorrência disso, muitos Tribunais estão desenvolvendo um núcleo de inteligência cuja missão é monitorar e combater a advocacia predatória.
E portanto, a certeza de que se deve ter a fim de equalizar tal situação é a compreensão do paradoxo de que na atualidade a ampliação do acesso à justiça passa pela restrição do próprio acesso.
[2] https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/litigancia-predatoria/
Autor: Guilherme da Costa Ferreira Pignaneli • email: guilherme.pignaneli@ernestoborges.com.br