A Constituição Federal, em seu capítulo VIII – arts. 231 e 231 – reconhece o direito dos povos indígenas à preservação de sua organização social, costumes, línguas, entre outros aspectos imateriais de sua cultura, cabendo à União Federal proteger e preservar todos os seus bens. O texto prossegue disciplinando o uso dos territórios tradicionalmente ocupados por estes grupos, assegurando-lhes o direito inalienável e imprescritível de posse e uso de território suficiente para garantir sua preservação, bem-estar e desenvolvimento físico e cultural.

Estes dispositivos foram incluídos na Carta Constitucional dentro um contexto histórico e político singular. O período pós-redemocratização foi marcado pela busca da consolidação de direitos sociais, com a promoção de políticas de reparação e compensação de direitos das minorias que haviam, até aquele momento, tido pouca ou nenhuma representação no cenário político e institucional do país.

Todavia, em que pesem as conquistas celebradas com a Constituição Cidadã terem sido fundamentais para o desenvolvimento do país nas últimas 3 décadas, com o passar dos anos o cenário sociopolítico e econômico brasileiro passou por significativas mudanças estruturais, cujo resultado, não mais, necessariamente, reflete os anseios existentes na sociedade no final da década de 1980.

Como exemplo dessa mudança de paradigma, pode-se citar o acelerado crescimento do agronegócio que, nos últimos vinte anos, transformou-se na principal força motriz do Produto Interno Bruto nacional, respondendo por 1/3 de toda riqueza produzida no país, com preponderância no superávit da balança comercial externa.

Frente a este contexto, cabe frisar que o desenvolvimento de qualquer atividade agropecuária está fortemente atrelado à necessidade de sólido lastro jurídico, sendo esta segurança fundamental para a produção e comércio de produtos dos gêneros agrícola e pecuário, posto que muitos dos contratos celebrados lastreiam-se na confiança e dependem de diversos fatores exógenos para sua consecução.

Além disso, o setor está umbilicalmente ligado à necessidade de sólidas garantias legais quanto as questões fundiárias, pois a incerteza sobre a posse ou a propriedade dos meios produtivos tem como consequência imediata a retração dos investimentos e queda da produção. Dentre os muitos desafios enfrentados pelo setor, um se destacou nos últimos meses: a demarcação de terras indígenas.

O debate sobre o estabelecimento de uma limitação para a demarcação de terras indígenas remonta ao ano de 2009, com o julgamento sobre a reserva Raposa Serra do Sol (Pet 3.388-4), quando o Ministro Ayres Brito propôs a adoção de um marco temporal com base na tese de que somente os povos que estivessem ocupando suas terras até a data da promulgação da Constituição, 05/10/1988, poderiam ter direito à demarcação de seus territórios.

Mais de uma década após esse julgamento, se encontra pendente de análise o Recurso Extraordinário RE 1017365/SC que teve sua repercussão geral reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal no ano de 2019 e foi levada ao plenário do Tribunal no ano de 2021. Neste caso, o recurso interposto pela Funai busca resistir à pretensão de reintegração de posse proposta pelo estado de Santa Catarina relativamente à parcela da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ demarcada no ano de 1996 e ampliada no ano de 2003 e que, segundo argumenta o Ente Federativo pertenceria ao estado, tendo sido legalmente vendida a particulares ainda no século XIX.

O julgamento, retomado no último dia 07 de junho e suspenso em razão do pedido de vista do Ministro André Mendonça discute a adoção da tese proposta no julgamento ocorrido no ano de 2009: a constitucionalidade da existência de um marco temporal para a demarcação de terras pertencentes aos povos indígenas. Em seu voto, o relator, Ministro Edson Facchin, defendeu o entendimento de que não haveria um limite para a demarcação, ou seja, não há a necessidade destes povos estarem em posse da área na data da promulgação da Constituição Federal, em 5/10/1988.

O entendimento que conduz o voto do relator traz uma série de problemáticas quanto à demarcação de áreas supostamente pertencentes a povos indígenas.

Entre estes problemas, é importante destacar o alto grau de dificuldade em se atestar, com razoável grau de certeza, se, outrora, aquele assentamento humano estivera, realmente, estabelecido naquele local. Isto porque, de acordo com a portaria 14/99 editada em 1996 pelo Ministério da Justiça, um dos requisitos para elaboração do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação de Terras Indígenas – procedimento administrativo prévio à demarcação -, é a “pesquisa sobre o histórico de ocupação da terra indígena de acordo com a memória do grupo étnico envolvido”, ou seja, a elaboração do laudo antropológico considera aspectos culturais e históricos da população em relação à terra, fundamentando suas conclusões em registros tradicionais daquele povo, o qual, muitas vezes, se faz tão somente em bases orais, e que, por conseguinte, torna impreciso definir se houve, de fato, a relação de posse outrora existente, sobretudo ao se considerar um período de 500 anos.

Ante a incerteza causada pela ausência de parâmetros objetivos na demarcação de novos territórios, convém ainda destacar o argumento proposto pelo Ministro Gilmar Mendes ao enfrentar o tema no ano de 2014. Suas considerações naquele julgamento deram origem à tese de Copacabana que pode ser sintetizada na seguinte premissa: considerando-se a inexistência de um termo para o reconhecimento e demarcação de territórios indígenas e, considerando-se ainda, que estes eram os habitantes primeiros do território encontrado no ano de 1500, estar-se-ia diante a possibilidade de ver reconhecida a integridade do território como terra indígena, ocupando-se, inclusive, os prédios da Av. Atlântica em Copacabana.

Ou seja, não se mostra minimamente razoável o reconhecimento da imprescritibilidade do direito à reinvindicação e demarcação de terras por povos indígenas, sob pena de, em um cenário hipotético, mas juridicamente plausível, vir a ser reconhecido qualquer território que, a qualquer tempo e a qualquer título, possa ter sido ocupado por povos originários, alimentando incertezas quanto ao respeito à propriedade particular do patrimônio já integrado ao mercado  imobiliário nacional, como destacou em trecho de seu voto o Ministro Nunes Marques na sessão de julgamento ocorrida no dia 07 de junho.

Analisando a questão sob outro aspecto, convém destacar ainda que a ausência de definição quanto ao limite para a demarcação de territórios indígenas dá margem a outras questões de natureza mais complexas e graves, decorrentes do mesmo ponto nevrálgico: a absoluta ausência de segurança jurídica para o estabelecimento e consolidação de empreendimentos no país, questão que permeia não só a iniciativa privada em geral, e o agronegócio em particular, mas também impacta diretamente o setor público no que tange a contratação de obras de infraestrutura  básica, como a construção de auto estradas, usinas hidrelétricas, portos e ferrovias.

Este contexto anômalo colabora para o estabelecimento de um cenário de incertezas quanto ao desenvolvimento do país, restringindo a capacidade produtiva nacional, vez que, a exemplo do que foi mencionado anteriormente, o agronegócio – e não somente ele – depende de uma série de condições para seu desenvolvimento, dentre elas, a existência de um razoável grau de certeza quanto ao status jurídico dos meios de produção e estabilidade que assegure o retorno de investimentos de longo prazo.

A existência de dúvidas ou riscos quanto ao emprego do capital investido gera, como consequência, uma desestabilização de todo o setor, levando à redução de investimentos, queda de produção e perda de competitividade, que por seu turno conduzem a uma série de consequências que afetam diretamente a economia: redução de emprego e renda, inflação e etc, as quais, por sua vez, podem-se traduzir, ainda que de forma colateral, no aumento de demandas judiciais, elevação da violência no campo, entre outros que acabam por desestimular o investimento em novos empreendimentos rurais.

Ao se analisar a questão dentro de uma perspectiva estritamente jurídica, deve-se também ressalvar que a imprescritibilidade ao direito demarcatório viola o princípio da isonomia, fundamento basilar do ordenamento jurídico pátrio, vez que faculta a um grupo de indivíduos exercer um direito potestativo que se estende indefinidamente no tempo, o que não encontra eco em nenhum dos institutos de direito civil previstos em nossa legislação.

Neste mesmo sentido, aventar-se a possibilidade do exercício irrestrito de um direito, ainda que a Constituição assegure, como dever do estado, a defesa e preservação dos povos originários, seria um evidente abuso, porquanto o texto constitucional assegura, com status de cláusula pétrea, o direito à propriedade. Propriedade esta que, na maioria dos casos, foi adquirida legalmente, cujo domínio, por vezes, se estende por dezenas, senão centenas de anos, não sendo sequer minimamente razoável supor que o particular tenha de ser penalizado por um eventual erro cometido pelo Estado.

Logo, o julgamento definitivo da repercussão geral afeta à esta matéria é imperativo e deve ser tratado com a devida cautela, uma vez que seus efeitos serão sentidos ao longo de ainda incontáveis décadas e tem o condão de limitar ou quiçá inviabilizar o progresso econômico e social do país.

A fixação de um entendimento que permita a superação desta controvérsia, portanto, não se restringe à limitação temporal para o reconhecimento e demarcação de territórios indígenas, mas, sobretudo, trata-se de ser estabelecer segurança jurídica, revestindo de confiabilidade as relações negociais como fundamento necessário para garantir o desenvolvimento nacional.

Autores: Alex de Andrade Lira e Pedro Batistoti Boller

 

Disponível em: https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/o-urgente-julgamento-do-marco-temporal/

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O MARCO TEMPORAL E O NECESSÁRIO ENFRENTAMENTO À INSEGURANÇA JURÍDICA NO BRASIL

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