Após a recessão econômica mundial ocasionada pela pandemia de SARS-CoV-19, muitos brasileiros veem o mercado de moedas digitais como um investimento rentável e simples. Também conhecidas como cripto moedas ou moedas virtuais, tais ativos financeiros se assemelham a moeda em seu sentido tradicional, com a grande diferença de que estas são controladas por um órgão ou governo – a Casa da Moeda no caso do Brasil, ao passo que aquelas (em maioria) não possuem um órgão regulador. Prometendo descomplicar o sistema financeiro, as criptomoedas dispensam intermediários em suas transações, propondo transações através de um sistema chamado blockchain[1], composto por dois mecanismos: o block capaz de registrar a movimentação dos ativos e o chain, função algorítmica que gera uma impressão digital, possibilitando individualizar cada criptomoeda[2].
Quando o assunto passa a ser a regulamentação das moedas digitais no cenário nacional, imperioso destacar o Comunicado BACEN nº 25.306/2014, que inclusive diferencia as criptomoedas da “moeda eletrônica” tratada pela Lei nº 12.865/2013. Dentre os pontos principais destacados pelo então Diretor de Política Monetária Aldo Luiz Mendes estão: a não emissão ou garantia das moedas por autoridade monetária, não garantia de conversão para a moeda oficial e a falta de lastro em qualquer ativo financeiro real. Ainda, o Ofício Circular nº 1/2018/CVM/SIN da Comissão de Valores Mobiliários destaca que: “Baseado em dita indefinição, a interpretação desta área técnica é a de que as criptomoedas não podem ser qualificadas como ativos financeiros, para os efeitos do disposto no artigo 2º, V, da Instrução CVM nº 555/14, e por essa razão, sua aquisição direta pelos fundos de investimento ali regulados não é permitida”[3].
Extrai-se deste modo, a quase avessa postura que o Banco Central ilustra frente a criptomoedas, além da proibição direta pela CVM aos fundos de investimento obterem diretamente moedas virtuais, tendo em vista que tais não são considerados ativos financeiros.
Em outra toada, contudo, a Receita Federal do Brasil equipara as moedas digitais inclusive a bens, para efeitos de Imposto de Renda. Os valores superiores a R$ 5.000,00 investidos em criptomoedas devem ser declarados no IR como “Bens e direitos”, sendo ainda as vendas de moedas virtuais em montante superior a R$ 35.000,00 mensais sujeitas à retenção de imposto de ganho sobre capital. Ademais, incidem atualmente sobre moedas virtuais além do IR, o IOF no âmbito federal, o ITCMD e ICMS nos estados e o ISS nos municípios. Notória, portanto, a indefinição dos criptoativos como ativos, comódites, bens ou de fato moedas. Assim sendo, resta o questionamento: Qual a natureza jurídica das criptomoedas?
Consoante se extrai da Lei nº 9.069 de 1995, a unidade do Sistema Monetário Nacional é o REAL, não sendo admitida no país a existência de outra moeda concomitante, tendo em vista o monopólio estabelecido ao Banco Central. Retoma-se neste momento que o BACEN reconhece a existência de moedas eletrônicas (Lei nº 12.865/2013), esclarecendo que tais – vide Comunicado nº 31.379/2017 – devem ser referenciadas em reais ou em outra moeda estabelecida por governo soberano. Logo, no âmbito interno não é possível alegar que os criptoativos sejam de fato moedas, vez que não expressam REAL ou são vinculados a governo estrangeiro.
Propõe a Receita Federal do Brasil que as moedas digitais sejam entendidas como bens equiparados a ativos financeiros:
Em abril de 2014, a Receita Federal do Brasil, estabeleceu como trataria a detenção e o uso de bitcoins e outras moedas digitais. O Brasil está tratando as moedas digitais como ativos financeiros, com a Receita Federal impondo um imposto de 15% sobre os ganhos de capital no momento da venda, no entanto, existem algumas diferenças importantes que podem ser positivas para os usuários de bitcoins no país. Aqueles que vendem menos moedas com um valor inferior a R$ 35.000,00, não terão de pagar o imposto. Isso significa que os usuários de bitcoin no Brasil não terão de calcular os impostos sobre ganhos de capital ao fazer pequenas compras. A Receita Federal também exige declarações de contas anuais daqueles que possuem mais de R$ 1.000,00 em participações em moeda digital.[4]
No mesmo sentido de considerar a moeda digital como bem ou ativo financeiro, definiu o Superior Tribunal de Justiça que operação financeira envolvendo criptomoeda é entendida como negócio jurídico de transmissão de um bem móvel (Recurso Especial nº 1.696.214 – SP).
Apesar de eventuais comentários e definições avulsas no regime jurídico nacional, o país ainda não possui nenhuma lei que regulamente as criptomoedas. Atualmente tramita no Senado Federal o Projeto de Lei nº 3.825/2019 – aprovado pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), entretanto, como decorrência lógica, tais disposições não estão em vigor, nem produzem efeitos jurídicos. Mesmo assim, autoridades de todas as categorias de entes federativos fixaram sobre operações envolvendo moedas digitais a incidência de impostos diversos.
É certo que ao definir a criptomoeda como bem móvel, a mesma nos moldes da Instrução Normativa nº 1.888/2019 pode de fato ser tributada, não sendo possível arguir uma violação fulminante ao princípio da legalidade, pilar do direito tributário nacional. Todavia, quando o citado princípio é entendido nos ensinamentos de Roque Carraza[5] como efetiva limitação ao exercício da competência tributária e exigência de que: “Só a lei – tomada na acepção técnico-específica de ato do Poder Legislativo, decretado em obediência aos trâmites e formalidade exigidos pela Constituição – é dado (o poder de) criar ou aumentar tributos”, parece-nos delicada a regulamentação de criptomoedas por mera instrução normativa, ato meramente administrativo por natureza.
Cercada por debates, a tributação de criptomoedas e operações que as envolvam esbarra no conflito entre o necessário avanço do sistema tributário brasileiro no sentido de acompanhar tendências e transações reais de mercado, e a instituição da legalidade como princípio guia do Direito Público como um todo. Enquanto não ocorrer a aprovação de lei capaz de sistematizar e definir a situação das moedas digitais no país, há de permanecer a situação de incerteza e conflito entre as entidades do próprio Estado.
[1] ULRICH, Fernando. Bitcoin: A moeda na era digital. 1. ed. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2014.
[2] NAKAMOTO, S. Bitcoin: Um Sistema de Transação de Dinheiro Ponto-a-Ponto. Tradução de Rhlinden. Disponível em: https://bitcoin.org/files/bitcoin-paper/bitcoin_pt.pdf.
[3] Ofício Circular CVM/SIN 01/18. Disponível em: https://conteudo.cvm.gov.br/legislacao/oficios-circulares/sin/oc-sin-0118.html.
[4] ANDRADE, Mariana Dionísio de. Tratamento jurídico das criptomoedas: a dinâmica dos bitcoins e o crime de lavagem de dinheiro. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 7, n. 3, p. 45-59, dez. 2017. Disponível em: https://www.publicacoesacadeicas.uniceub.br/RBPP/article/view/4897/3645.
[5] CARRAZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 22ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
Disponível em: https://exame.com/bussola/tributacao-de-criptomoedas-avanco-ou-violacao-da-legalidade/
Autor: Flávia Sant'Anna Benites • email: flavia@ernestoborges.com.br • Tel.: +55 67 99984 1406